Pensamentos sem rumo
Neurocientistas enfrentam dificuldades para identificar os mecanismos cerebrais da divagação mental
Roberto Lent*
A
escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941) perdida em divagações.
Você
chega do trabalho ou da faculdade, instala-se numa poltrona com um
copo de uísque ou refrigerante para relaxar, põe um CD para tocar
uma música suave, e daqui a pouco seus pensamentos vagueiam sem
rumo, abordando ora uma coisa, ora outra. Você não presta mais
atenção à música ambiente, nem a qualquer ideia objetiva
específica. No entanto, sua mente flutua livremente: surgem idéias
novas, imaginações e fantasias, lembranças do passado e aspirações
sobre o futuro. O pensamento transcorre sem rumo. Você divaga.
As
divagações são uma forma de pensamento muito criativa e livre,
talvez relacionada com o que os filósofos chamam às vezes de
“pensamento nômade”. O que acontece em nosso cérebro quando
divagamos, quando pensamos sem um objetivo cognitivo explícito?
Haveria áreas cerebrais específicas destinadas a essa função? A
divagação é de fato uma função cerebral, ou uma “falta de
função”?
Os neurocientistas têm se debruçado sobre esse
problema com grande dificuldade. Primeiro, é difícil definir com
precisão o que é o pensamento divagante, e saber quando ele ocorre.
Além disso, não há certeza objetiva de que um indivíduo esteja de
fato divagando, porque isso depende de seu próprio relato. Por isso
mesmo, não há nesse caso como dispor de modelos animais. Como
fazer?
O ponto de partida tem sido um conjunto de regiões
cerebrais denominado “sistema basal default ”,
por analogia com o termo usado pelos programadores de computador para
se referir a uma seqüência básica de algum programa, sobre a qual
se colocam as instruções de cada usuário. O envolvimento do
sistema basal default com
a divagação foi revelado ao se descobrir que essas tais regiões
aumentam de atividade justamente quando o indivíduo cessa alguma
tarefa cognitiva focalizada em uma meta.
A coisa funciona assim:
estamos resolvendo um problema de matemática e, ao final, fechamos o
caderno e ficamos um tempo “em repouso”, sem pensar em nada
específico. Nesse momento aparentemente vazio, tornam-se ativas
várias regiões do cérebro situadas no plano mediano, isto é, no
plano de cada hemisfério cerebral que faz face com o hemisfério
oposto. O que estarão fazendo?
O
sistema basal default é
constituído por regiões situadas no plano mediano dos hemisférios
cerebrais, em ambos os lados. São as áreas marcadas em amarelo no
exame de ressonância acima, mostradas no plano mediano como se vê
na imagem de baixo. A letra B indica que a ativação é bilateral.
Foto de cima modificada de Mason e cols. (2007) Science 315:
393-395.
Recentemente, algumas tentativas foram feitas para
verificar se o sistema basal default estaria
relacionado com os pensamentos divagantes. Um grupo de pesquisadores
do Dartmouth College, nos EUA, tentou um experimento bastante
interessante liderado pela psicóloga Malia Mason. Eles reuniram 19
voluntários que eram então solicitados a aprender uma tarefa
simples de natureza verbal.
Primeiro os participantes fixavam o
olhar em um ponto de uma tela de computador, na qual depois apareciam
fugazmente letras dispostas numa certa ordem. Deviam lembrar-se da
ordem das letras, para logo depois responderem sobre a posição de
cada letra, e voltar a fixar o ponto central da tela. Isso ocorria
durante três dias. No quarto dia, os participantes eram solicitados
a responder, no meio da tarefa, se haviam tido algum pensamento
irrelevante, não relacionado à tarefa de memorização verbal que
haviam aprendido. Além disso, nesse mesmo dia eles eram expostos a
uma outra tarefa do mesmo tipo, inteiramente nova. Finalmente, no
quinto dia os voluntários realizavam o mesmo experimento dentro de
uma máquina de ressonância magnética funcional, capaz de revelar
quais áreas cerebrais estavam mais ativas.
A pesquisa revelou
que sim, o sistema basal default estava
mais ativo durante os momentos de fixação do olhar no ponto da tela
que aparecia antes e depois do experimento. Além disso, as mesmas
regiões apareciam mais ativas durante a realização das tarefas já
aprendidas do que durante a tarefa nova do quarto dia. E mais, os
participantes relataram a ocorrência de mais divagações mentais
durante as tarefas aprendidas do que durante a tarefa nova, como se
não mais fosse necessário prestar atenção a elas, e o pensamento
ficasse mais livre.
Os pesquisadores interpretaram os resultados
atribuindo ao sistema default a
função de prover a base neural para a ocorrência de pensamentos
livres, desconectados de qualquer objetivo cognitivo – as
divagações. E até especularam que as divagações teriam a
“utilidade” mental de fornecer-nos uma conexão entre o passado,
o presente e o futuro, algo que os pensamentos orientados para alguma
tarefa não conseguem fazer.
Mas
nem tudo são flores em ciência. Imediatamente, no mesmo número da
revista Science no
qual o trabalho do grupo de Malia Mason foi publicado há alguns
meses, apareceu uma contestação com todas as pedras na mão. Outro
grupo importante de pesquisa, do University College em Londres,
envolvendo pesos-pesados da área como Paul Burgess e Chris Frith,
criticou a interpretação de Mason e seus colaboradores.
Esses
autores argumentaram que o experimento era fundamentado no relato
subjetivo dos participantes, e que durante a fixação do olhar à
espera da tarefa, uma maior atividade do sistema
basal default poderia
bem dever-se a uma elevação do grau de alerta e atenção que
seriam necessários quando a tarefa fosse iniciada.
Como
ficamos, então? Obviamente, a questão está longe de ser resolvida.
O indício da maior atividade do sistema basal default durante
as divagações é importante e certamente será perseguido nos
futuros trabalhos. Talvez seja o caso de analisar pacientes com
lesões cerebrais nessas regiões: será que se queixam de “cabeça
vazia”?
Outra pergunta fica no ar: para que servem as
divagações – terão algum valor adaptativo para a sobrevivência
da espécie humana? Terão relação com a imaginação e com a
criatividade, como querem os filósofos que defendem o conceito de
pensamento nômade? De qualquer modo, divagar é um prazer. E como
disse o bioquímico norte-americano Linus Pauling (1901-1994): “a
melhor maneira de ter uma boa ideia é ter muitas idéias...”.
Comentários
Postar um comentário