A dança obriga a gente a viver
Magela Lima
Beirando os 40, a cineasta paulista Laís Bodanzky anda feliz como criança. A razão? Sua derradeira cria. Premiado como melhor filme na última edição do Festival de Brasília, “Chega de Saudade” já contabiliza a cota de 150 mil espectadores. Na entrevista a seguir, Laís fala de seu processo criativo e descreve seu encontro com o universo da dança de salão.
Por
que construir uma história dentro de um salão de baile? Que tipo de
relações e situações se dão especificamente nesse espaço, que
não em outro? Por que a opção por um lugar onde se não dança e,
não, por exemplo, por um lugar onde se come?
Bom,
na verdade, a intenção com esse filme é convidar o espectador a
conhecer uma noite num salão. Toda a linguagem, toda a construção
desde o roteiro, a filmagem e a montagem foi focada para que o
público fosse conduzido para o contexto dos salões de baile. Por
isso, também, o filme expõe um olhar tão realista. A princípio,
nosso desejo era mostrar esse universo, tendo em vista que nem todo o
conhece. Para mim, o salão é um lugar mágico. Mágico não só
pelo prazer que envolve a dança e a música, mas pela possibilidade
que oferece de se encontrar pessoas especiais. As pessoas que vão ao
salão são pessoas que optaram por estar ali. Ninguém tem problema
num salão, ou melhor, ninguém se preocupa com seus problemas quando
vai a um salão. O salão é o lugar da diversão plena. O salão é
o lugar da busca pela felicidade. É o lugar do encontro, da troca. É
o lugar onde se arrisca a vida. O salão é o lugar de quem não
aceitou entregar as rédeas da própria vida. É lugar onde vale a
pena arriscar em nome da felicidade.
Você diz que o União Fraterna, salão que no filme ganha o nome de Chega de Saudade, não é uma locação, mas, sim, um personagem da trama. Seria exagero dizer que a dança é a grande protagonista dessa história?
Eu acho que a dança faz parte da história. O salão de baile é uma somatória, um conjunto de informações. É uma somatória da dança com a música, com as roupas que as pessoas escolhem para dançar, com as formas de comportamento que se impõem ali... Não vejo a dança como protagonista. Vejo, sim, ela fazendo parte de um contexto muito maior. Ela é também um personagem, mas, não, a protagonista.
Que intimidade você tinha com a dança de salão antes de começar a produzir o filme e que tipo de laços construiu depois que “Chega de Saudade” chegou às telas?
Antes, tinha um envolvimento muito pessoal. Frequento alguns salões tradicionais aqui de São Paulo há bastante tempo por mera diversão. Vou, encontro meus amigos, tomo uma cerveja, escuto uma boa música e danço. Adoro dançar! Depois, não diria especificamente que a minha relação com esse universo dos salões tenha mudado. Vejo o filme como uma resposta a uma sensação minha anterior. Para mim, a dança nos salões não é uma dança preocupada com a firula. É uma dança em que se quer acertar o passo, claro, mas se quer, sobretudo, um momento de encontro. A dança nos salões é uma estratégia de encontro. Era isso que queria ressaltar no filme. Por isso, abri mão de grandes coreografias. O salão me ensinou que, na pista, o passo bem feito é tão importante quanto o olhar afetuoso. Agora, a experiência do filme, me deu, sim, um novo olhar sobre o envelhecimento. Um olhar convidativo, esperançoso, mesmo diante de grandes dramas, rejeições e solidões. “Chega de Saudade” me fez perceber que a vida é pulsante também com a passagem do tempo. A vida não se finda na juventude, a gente segue experimentando sensações com o passar do tempo. É possível, sim, por exemplo, amar na velhice. Foi muito bacana, para mim, perceber que um idoso pode amar com a mesma intensidade que um adolescente.
Você arriscaria alguma explicação para o fato de a dança de salão ter tantos adeptos, ser tão atrativa, a pessoas mais idosas?
A dança de salão tem seus segredos. Esse sucesso todo do forró universitário, por exemplo, mostra uma dança de salão extremamente popular entre um público mais jovem. Penso que essa opção por dançar a dois não tenha um limite de tempo. Agora, é fato, a dança de salão é uma modalidade muito antiga. Então, o senhorzinho e a senhorinha que vão ao baile com 70 ou 80 anos podem ter isso como um hábito da vida toda, e, não, da velhice. Mas, eu prefiro responder essa tua pergunta, dizendo que a velhice é uma etapa da vida em cada um de nós fatalmente é ou será confrontado com a presença do tempo livre. O salão é o lugar onde esse tempo livre, o tempo da aposentadoria, pode se converter no tempo da alegria. É o lugar onde o idoso pode viver, ainda, aquilo que muitas vezes se privou. É o lugar do ainda dá tempo.
Em Brasília, quando o longa estreou, muito se comenta que vários casais começaram a dançar enquanto os créditos finais subiam. O J.C Violla, que coreografou as cenas, me disse que, nos ensaios, a equipe técnica muitas vezes não resistia e também caía na dança. Esse convite à dança foi intencional ou foi se configurando ao longo do processo?
Olha, existia uma intenção em provocar o público a dançar, mas o filme me surpreendeu muito. De fato, na sessão lá de Brasília, quando as pessoas começaram a dançar, eu fiquei muito surpresa. É como se convite que a gente pensou, o convite de “venha passar uma noite num salão de baile”, tivesse ido além. O filme transformou o próprio cinema num salão. Então, isso foi uma surpresa muito boa. Nesse quesito, sim, “Chega de Saudade” é um filme de dança. Não dá para ver e ficar parado.
Como foi o convívio entre as câmeras e os dançarinos no salão? Que diálogo você procurou estabelecer entre dança e cinema?
Então, eu procurei construir um olhar que estivesse preocupado em extrair não só o passo bonito, mas, principalmente, o clima da dança. Eu filmei os pés da mesma maneira que filmei os abraços e as trocas de olhar durante a dança. Ou seja, eu quis mostrar que a dança, muitas vezes, conduz o salão para uma espécie de clímax. O tempo inteiro me preocupei em preservar o sentimento que estava em jogo, e, não, somente a dança por ela mesma.
Alguns críticos aproximam “Chega de Saudade” de “O Baile” (1983), do Ettore Scola. Você e o Luiz Bolognesi, roteirista do filme, apontam uma relação maior com “O Jantar”, do mesmo diretor. Fugindo um pouco dessa opção de locação e narrativa de ambiente único, queria que você explicasse melhor essa contribuição indireta do Scola.
Todo o cinema do Scola é pautado em histórias do cotidiano e em cima de bons personagens. O cinema do Scola é um cinema de personagem. Quando pensei em fazer o “Chega de Saudade”, tinha esse objetivo: fazer um filme de personagem. Queria um filme íntimo. Enquanto linguagem, o Scola é uma referência também nessa proposta de cinema-mosaico. Não só “O Baile” e “O Jantar” têm essa característica, mas muitos outros trabalhos dele.
Além dele, com quais outros cineastas você conversou para realizar esse novo filme? Você se preocupou em ver produções em que a dança assume uma dimensão mais expressiva, como, por exemplo, “O Tango” (1998), do Carlos Saura?
Na verdade, não me ative tanto assim à dança. Queria fazer um filme de gente, sobre gente... Vi muito o cinema do (Robert) Altman (1925-2006), por exemplo. Claro, eu fiz uma pesquisa vasta sobre filmes de dança, mas não me pautei em nenhuma realização ou diretor específico. De fato, o formato que me interessava era o cinema de personagem. Um filme que vi, como espectadora, e percebo uma influência no “Chega de Saudade” é “O gosto dos outros” (2000), da Agnès Jaoui. Queria fazer um filme não sobre dança, mas sobre os pequenos sentimentos cotidianos.
No elenco, a gente vê artistas com uma história pessoal com a dança muito forte, como a Betty Faria e Clarisse Abujamra, que faz um número maravilhoso de tango. Como foi a seleção dos atores? A dança falou alto no momento de oferecer os tipos a seus futuros intérpretes?
Para a personagem da Clarisse, muito. No roteiro, já estava determinado que ela tinha que dançar muito bem e tango não é algo que se faz de conta que dança. Então, para esse personagem, eu fui absolutamente rigorosa. Queria uma atriz-dançarina! A Clarisse foi um achado, sem dúvida. Ela está linda, no filme!!! Para os outros personagens, a dança era um quesito importante, mas secundário. Desde o princípio, quis mostrar em “Chega de Saudade”, um salão comum, de pessoas comuns, onde nem todo mundo dança maravilhosamente. No salão, a grande maioria dos frequentadores não dança assim tão bem como se pensa. As pessoas dançam pelo puro prazer, não estão nem aí se fazem o passo certo ou errado. Então, mais até do que a dança, meu foco foi mesmo a qualidade interpretativa. Queria um filme de personagem e não se chega a um bom personagem sem um bom ator.
Em paralelo ao tempo da dança, “Chega de Saudade” chama a atenção para um tempo da escolha. O filme fala de encontros e desencontros e de uma certa incapacidade nossa de afirmar escolhas. Como essa trama se impôs ao contexto dos bailes de salão? De que forma os cenários reais, com suas histórias reais, influenciaram a tua criação?
Todas as pessoas que vão ao baile carregam em si uma questão central: qual o sentido da vida? Então, vejo essas pessoas, esses frequentadores dos bailes de salão, respondendo essa questão de forma ativa. São pessoas dispostas, de fato, a encontrar e a afirmar esse sentido, tantas vezes tão distante, custe o que custar. O frequentador do salão tem uma ousadia encantadora. No salão, não há passividade diante da vida. Claro, essa postura é universal. Mas, no baile, assume, sim, uma dimensão mais expressiva. Em muito, por conta da própria dança. A dança obriga a gente a viver o presente. Ninguém dança pensando, por exemplo, nas contas que tem para pagar, se não perde o ritmo, erra o passo. Dançar obriga a viver intensamente o presente. Os salões me influenciaram de forma decisiva ao longo da criação. Da linguagem à escolha do elenco de apoio, tudo me veio da experiência do salão. Todo o elenco de apoio do “Chega de Saudade” é de frequentadores de baile, gente comum, real. A realidade invadiu o filme de vários aspectos. Não podia ter sido diferente.
Por fim, queria saber como você, a diretora, assiste ao filme. Que sensações te provocam “Chega de Saudade”? Você também se apaixonou pela dança?
Ah, eu me divirto muitíssimo, me emociono sempre... O filme provoca um passeio musical tão gostoso, que mal sinto o tempo passar. Quando me dou conta, vejo o filme acabando. “Chega de Saudade” me convida a ser feliz. Volta e meia, me pego pensando que era mesmo esse o filme que queria fazer. Valeu a pena esperar. E, claro, também sinto essa vontade de começar a dançar!
Fique por dentro
Estradas
curtas, caminhos distantes;
Filha
do cineasta Jorge Bodanzky, Laís tem intimidade com o cinema desde
muito cedo. A estréia como realizadora acontece aos 25 anos, com o
curta-metragem ´Cartão Vermelho´ (1994). Em parceria com o
roteirista Luiz Bolognesi, seu marido e principal colaborador,
desenvolve o projeto Cine Mambembe, que resultou no documentário de
média-metragem ´Cine Mambembe, o cinema descobre o Brasil´ (1999).
Seu longa-metragem de estréia, ´Bicho de sete cabeças´ (2001),
teve grande repercussão no circuito dos festivais de cinema, sendo
considerado um dos melhores títulos contemporâneos.
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